Pílulas de literatura: Robert Musil e O Homem Sem Qualidades

Pequeno trecho do livro O Homem Sem Qualidades, sobre o viscoso da vida...

“Nesse momento ele desejou ser um homem sem qualidades. Mas provavelmente em todas as pessoas se passa algo semelhante. No fundo, poucos sabem, no meio da sua vida, como se tornaram aquilo que são, com seus prazeres; sua visão do mundo, sua esposa, seu caráter, profissão e realizações, mas têm a sensação de que já não se poderá mudar lá muita coisa. Até se poderia afirmar que foram traídas, pois não se encontra em lugar algum uma razão suficientemente forte para tudo ter sido como é; poderia ter sido diferente; os acontecimentos raramente dependeram delas, em geral dependeram de uma série de circunstâncias, do capricho, vida, morte de outras pessoas, e apenas se lançaram sobre elas num momento determinado. Assim, na juventude ainda jazia à frente delas algo como uma manhã inesgotável, cheia de possibilidades e de vazio por todos os lados; mas já ao meio-dia aparece de repente algo que pode pretender ser a vida delas; isso é tão surpreendente como certo dia, de súbito, vermos uma pessoa com quem nos correspondemos durante vinte anos sem a conhecer, e a tínhamos imaginado tão diferente.

 

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Mas muito mais estranho ainda é que a maioria das pessoas nem notam isso; adotam o homem que apareceu nelas, cuja vida viveram; suas experiências lhes parecem agora a expressão das próprias qualidades, e seu destino lhes parece ser seu próprio mérito ou desgraça. Passou-se com elas o que acontece com um papel pega-moscas e uma mosca: aquilo se grudou nelas, aqui por um pelinho, ali por um movimento, e aos poucos as envolveu, até que ficam enterradas numa camada grossa que corresponde só muito de longe à forma original que tiveram um dia. E então só recordam vagamente sua juventude, quando ainda tinham certa resistência. Essa outra força puxa e gira, não quer ficar em lugar algum e desencadeia uma tempestade de desnorteados movimentos de fuga; a ironia da juventude, sua rebeldia contra o estabelecido, a disposição dos jovens para tudo o que é heroico, o sacrifício pessoal e o crime, sua fervorosa seriedade e sua inconstância — tudo isso não significa senão movimentos de fuga. No fundo, apenas expressam que nada daquilo que o jovem empreende lhe parece necessário e unívoco, nascido do seu interior, embora o manifestem como se tudo aquilo em que agora se precipitam fosse absolutamente inadiável e necessário.”

 

MUSIL, Robert. O Homem Sem Qualidades. 1978.
Livro I, cap. 34, p. 96.

 

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