Pílulas de literatura: Hemingway e os sarrafos que o mar trazia ardendo na lareira

Trecho do livro As Ilhas da Corrente, de Ernest Hemingway

“Ela lembrava quase tanto um navio quanto uma casa. Colocada ali para  resistir às tempestades, incrustava-se na ilha como se fosse parte integrante dela; mas de todas as janelas descortinava-se o mar e era muito arejada, de  modo que não se sentia calor nem nas noites mais quentes. Pintada de branco para ficar bem fresca no verão, podia-se avistá-la de longe, na Corrente do  Golfo. Era o ponto culminante da ilha, com exceção da extensa plantação de  altos pés de casuarina, a primeira coisa que se enxergava ao se acercar da ilha  por via marítima. Logo depois da mancha escura das casuarinas acima da  linha do horizonte, via-se o vulto branco da casa. Aí então, à medida que se  chegava mais perto, a ilha emergia inteira, com os coqueirais, as cabanas de madeira, a faixa branca da praia, e o verde da Ilha Sul se estendendo ao fundo. Thomas Hudson nunca avistava aquela casa na ilha sem que ficasse tomado por uma sensação de felicidade. Sempre a imaginava exatamente como um  barco. No inverno, quando soprava o vento norte e esfriava de fato, ela era  quente e confortável porque possuía a única lareira na ilha. Uma vasta lareira aberta onde Thomas Hudson queimava sarrafos lançados à praia pelas ondas.  

Guardava-os numa pilha enorme, encostados à parede do lado sul da casa. Estavam esbranquiçados de sol, cobertos de areia trazida pelo vento, e  ele se afeiçoava tanto a vários pedaços que até sentia ódio de ter que queimá-los. Mas depois das grandes tempestades sempre surgiam outros na praia, e terminava achando divertido queimar mesmo os pedaços de que mais gostava. Sabia que o mar traria novos e nas noites frias sentava na ampla poltrona diante do fogo, lendo à luz do lampião pousado na grossa mesa de tábuas, interrompendo a leitura para escutar o noroeste soprando lá fora, o estrondo da rebentação, e contemplar os enormes sarrafos esbranquiçados a arder.  

Às vezes apagava o lampião e deitava em cima do tapete no chão, detendo-se a fitar as pontas coloridas que o sal marinho e a areia desenhavam nas chamas enquanto a lenha ardia. Deitado, seus olhos nivelavam com a altura da madeira que queimava, tornando nítida a linha de separação entre a chama e os sarrafos, o que o deixava ao mesmo tempo triste e alegre. Toda madeira que queimasse o afetava desse modo. Mas os sarrafos trazidos pelo mar a arder ali no fogo causavam-lhe uma sensação que não conseguia definir. Achou que talvez fosse erro queimá-los, uma vez que gostava tanto deles; mas não tinha remorsos por causa disso.  

Ao deitar-se no chão sentia-se protegido contra o vento, embora, na realidade, o vento açoitasse até os cantos inferiores da casa, a grama mais baixa da ilha, infiltrando-se pelas raízes da vegetação rasteira da praia, pelos carrapichos e pela própria areia. No chão, podia sentir a batida da rebentação tal como se lembrava de ter sentido o disparo de poderosos canhões quando se jogava por terra perto de uma peça de artilharia há muitos e muitos anos, quando ainda era menino.  

A lareira era uma coisa formidável; no inverno e durante todos os outros meses contemplava-a com carinho, imaginando como seria quando o inverno chegasse de novo. O inverno era a melhor de todas as estações na ilha, e aguardava-o com impaciência o resto do ano inteiro.”

 

HEMINGWAY, Ernest. As Ilhas da Corrente. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. P. 17-18. 

Tradução de Milton Persson.

hemingway cuba mar
Hemingway em Cuba, 1947

Coluna – Ipsis Litteris: citações

 

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