No interior preto e branco de Béla Tarr

O cinema de Béla Tarr tem algo de sombrio, indecifrável, inerte, desolado, repleto de sombras de um período incerto no interior...

Ao visitar o interior rural de Minas Gerais recentemente, me deparei com um casebre num pé de serra no final da tarde. O lugar me chamou atenção e decidi encostar o carro para gravar algumas imagens – um dos meus passatempos favoritos.

Um casal, por volta de seus setenta anos, saiu pela porta com passos rápidos para recolher roupas de um varal agitado pelo vento que anunciava a chuva de verão.

Fiquei a imaginar qual linguagem cinematográfica poderia me servir de inspiração para meu vídeo caseiro.

Pensei em diferentes diretores, mas os detalhes daquele lugar, me remeteram ao cinema do húngaro Béla Tarr.

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Assim como em seus filmes quase nada acontece com as personagens, muito pouco também deveria acontecer no cotidiano do casal ali recolhendo as roupas.

O cenário também tinha uma relação com os filmes de Béla Tarr. Geralmente, tem algo de sombrio, indecifrável, inerte, desolado, repleto de sombras de um período incerto no interior da Hungria.

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Tarr trabalha com poucos planos de câmera numa única cena, priorizando essencialmente longos planos sequência. Essa é uma das marcas do diretor.

Uma tomada pode iniciar dentro da casa, percorrer outros cômodos, se movimentar para o exterior e, retornar ao interior novamente.

Para alguns críticos, o plano sequência é ideal para gerar mais realismo, uma vez que, evita a fragmentação da cena. Enquanto outros, defendem que o realismo não pode ser alcançado porque os critérios estéticos foram previamente definidos pelo diretor. 0c7d1c87 c113 4619 bb02 0010adf4748b

Teorias à parte, seus planos são operisticamente perfeitos. É justamente pela forma como a câmera se movimenta, a mise-en-scenè  nos revela gradualmente a essência de cada personagem, seus dramas e aflições.

Um de seus filmes mais aclamados, Cavalo de Turim (2011), o último do diretor antes de anunciar sua aposentadoria voluntaria, possui somente 31 tomadas ao longo de duas horas e vinte minutos. Pouquíssimos diálogos ou ações das personagens. Entretanto, é neste vazio das cenas que estão impregnadas a carga narrativa e poética do cineasta.

A inspiração do roteiro vem do episódio que teria ocorrido com o filósofo alemão Friedrich Nietzsche em Turim na Itália. Ao tentar impedir os maus tratos a um cavalo que se recusava a obedecer ao carroceiro – Nietzsche entrou em surto que perdurou até o fim de sua vida 10 anos mais tarde.

O filme inicia com uma tela escura, voz em off, para então, sermos presenteados com um dos mais belos planos sequência do cinema. E claro, uma estonteante trilha sonora de Myhali Vig.

Além de seus planos longos, outra particularidade é a fotografia preto e branco. O céu é sempre branco chapado, monocromático. Em muitas cenas, essas cores assumem um tom expressionista. Certos enquadramentos desafiam a linha que separa ficção e documentário.

A repetição de cenários é outra marca do húngaro. Qual motivo o levaria a utilizar desse recurso constantemente? Algo intrínseco a sua experiencia de vida, da cultura do país, um recorte de suas lembranças?

O ato de tomar sopa está sempre presente. A maneira como cada personagem toma sopa, nos sugere o universo que envolve a vida deles.

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A palinka, uma espécie de aguardente húngara, também não passa despercebida.

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E onde tem palinka, há bêbados. Os bares sempre embalados por acordeom. Uma música que esbarra no sinistro – com seus bêbados equilibristas e dançarinos.

Outra grande marca do cineasta são as janelas. Através dela, se espia, sonha, aguarda o juízo final, percebe-se o fim da utopia, a catástrofe iminente, ou simplesmente, um convite à luz – essencial na composição de sua linguagem estética.

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A câmera sempre baila diante das personagens em deslocamentos – ajustando foco, investigando e documentando a ação. Essas são algumas das características do cineasta que podem ser percebidas em seus últimos filmes.

Um deles, sátántango (1994), é preciso ter disponibilidade e interesse, porque serão sete horas de sessão.

Todas essas peculiaridades do cinema de Béla foram resgatadas por mim naquele pé de serra, no ermo do interior. Todos detalhes daquele lugar, cada frame, poderiam se juntar para formar um todo. As galinhas ciscando no terreiro, vacas num curral improvisado, janelas abertas que devoram a última luz do dia, a fumaça que denuncia o fogão a lenha finalizando a refeição. Seria uma sopa, um caldo de mandioca? Não pude conferir.

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Com os pingos grossos da chuva me recolhi dentro do carro novamente.

Deixei aquele lugar sob chuva forte, desviando das poças de água que se formavam pela estrada de terra. O desfecho de minhas últimas reminiscências sobre o cinema de Béla Tarr se completaria – a chuva e a existência humana.

Por Juliano Mignacca

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